sexta-feira, 17 de maio de 2013

Para ler o Concílio Vaticano II - parte 3

Constituição Dei Verbum

O interesse pelos temas ligados à Sagrada Escritura era muito forte na época do Concílio Vaticano II. A Constituição Dei Verbum (A Palavra de Deus - DV) é fruto de um caminho de amadurecimento que levou anos, sofrendo grande influência das Encíclicas Providentissimus Deus, de Leão XIII; Spiritus Paraclitus, de Bento XV, e Divino Afflante Spiritu, de Pio XII. Um aprofundamento lento, mas que reflectia uma necessidade da Igreja: dar o devido valor à Sagrada Escritura. Por ocasião do Concílio, chegaram a Roma 102 proposições que foram seleccionadas, agrupadas e aprofundadas pela comissão preparatória. O texto actual foi promulgado em 18 de Novembro de 1965, após receber 2.344 votos a favor e 6 contra.
O maior objectivo do Concílio era difundir a Palavra de Deus, em cumprimento do desejo de Jesus Cristo, que anunciou: "Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Notícia a toda a Humanidade" (Me 16,15). Logo no Proêmio destaca-se o objectivo de "propor a genuína doutrina sobre a Revelação divina e a sua transmissão, para que o mundo inteiro, ouvindo, acredite na mensagem da salvação, acreditando, espere e, esperando, ame" (DV, n. 1).
A estrutura do documento é bastante simples, mas concentra um ensinamento muito belo e profundo. O capítulo I é sobre a Revelação e descreve o processo contínuo de comunicação entre Deus e o ser humano. Revelar é uma palavra que deriva do latim revelare e significa tirar o véu, divulgar, mostrar, dar-se a conhecer. São muitos os sinónimos, mas a ideia central é exactamente esta: manifestar. Deus revelou-Se, deu-Se a conhecer aos nossos antepassados, manifestou a Sua vontade e a Sua verdade diversas vezes ao longo da história, com o objectivo de conduzir todos à comunhão consigo. Na plenitude dos tempos, revelou-se de modo pleno e definitivo através do seu Filho, Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. Em poucas linhas, a Dei Verbum concentra os fundamentos de toda a Teologia da Revelação. O seu conteúdo é bastante profundo e, por isso, ainda há muito a ser aplicado. Não é por acaso que a última encíclica de Bento XVI, sobre a Palavra de Deus, se chama Verbum Domini, numa clara referência e continuidade ao documento conciliar.
O capítulo II ocupa-se da transmissão da Revelação divina. Confirma que o nosso acesso à Revelação acontece através da pregação dos apóstolos e dos seus sucessores. É a chamada Tradição, que se origina nos apóstolos e progride na Igreja sob a inspiração do Espírito Santo (DV, n. 8). A Tradição ajuda a compreender a Escritura, pois as duas estão intimamente relacionadas, são dois pilares da fé cristã, provêm de Deus e tendem ao mesmo fim: conduzir o ser humano a Deus.
A seguir, o documento confirma que a Sagrada Escritura foi escrita por mãos humanas, mas sob inspiração do Espírito Santo. Para a interpretação da Bíblia é preciso ter em conta a sua inspiração divina, os géneros literários, os estudos exegéticos e hermenêuticos, e tudo o mais que possa contribuir para um aprofundamento e melhor compreensão do texto. Incentivam-se assim as pesquisas e estudos bíblicos, primeiramente por parte dos pastores e pregadores, mas também de todos os cristãos, pois não é possível amar o que não se conhece. Como bem destacou frei Herculano Alves: não é possível viver o Cristianismo sem conhecer o Livro onde está escrito o que é ser cristão. [...] A Bíblia nunca entrará realmente na vida dos cristãos, em particular, e na vida da Igreja, em geral, sem que a conheçamos previamente.
Os capítulos IV e V tratam, respectivamente, do Antigo e do Novo Testamento. O Antigo Testamento contém um retrato da história da salvação e serviu para preparar o advento de Cristo, que veio instaurar o Reino, como é descrito no Novo Testamento.
Por fim, vemos como a Sagrada Escritura age na vida da Igreja (capítulo VI). Ali vemos muito explícito o convite ao aprofundamento da Palavra de Deus através da tradução da Bíblia para todas as línguas, além do estudo e da investigação. A Escritura deve ser a alma da Teologia (DV, n. 24). De fato, a partir do Concílio, a linguagem bíblica generalizou-se no campo teológico e pastoral. Foi uma das revoluções provocadas pelo Concílio na Teologia e na vida da Igreja. A Constituição Dei Verbum deu origem a muitos outros bons frutos, tais como a renovação bíblica em âmbito litúrgico, teológico e catequético; a leitura e aprofundamento da Bíblia através do apostolado bíblico, com o aparecimento de diversos grupos, movimentos e iniciativas; a divulgação da lectio divina; a animação bíblica da pastoral.
Há, porém, muito ainda por fazer. Muitos cristãos estão distantes da Bíblia, ignorando os seus ensinamentos e verdades. Muitos também fazem uma leitura fundamentalista ou superficial que induz ao uso erróneo do seu ensinamento. Enfim, muitos ainda não foram iluminados pela Palavra de Deus, que é "lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho" (SI 119 [118], 105). O apelo do Concílio é fazer conhecer sempre mais e melhor a Palavra de Deus e que "encha cada vez mais os corações dos homens o tesouro da Revelação, confiado à Igreja" (DV, n. 26).
Esse apelo é tão actual que o último sínodo dos bispos, realizado de 5 a 26 de Outubro de 2008, falou exactamente sobre "a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja". No documento preparatório do sínodo, o secretário-geral, Nikola Eterovi, enfatizou a ainda actual necessidade de conhecer integralmente a fé da Igreja sobre a Palavra de Deus, de alargar com métodos adequados o encontro com a Sagrada Escritura por parte de todos os cristãos e, ao mesmo tempo, acolher os novos caminhos que o Espírito hoje sugere, para que a Palavra de Deus, nas suas várias manifestações, seja conhecida, ouvida, amada, aprofundada e vivida na Igreja, e assim se torne Palavra de verdade e de amor para todos os homens.
O sínodo trabalhou a relação entre Revelação, Palavra de Deus e Igreja, numa clara referência e actualização da Dei Verbum. Juntando a releitura do documento conciliar com as actualizadas reflexões do sínodo, expressas na Encíclica Verbum Domini, de Bento XVI, temos um grande incentivo para aprofundarmos a leitura da Bíblia através do estudo individual, da participação em cursos de formação e escolas bíblicas, da catequese, da busca de material de apoio e, claro, da oração diária, especialmente a lectio divina. Oxalá ouvíssemos na nossa comunidade as palavras dirigidas por Paulo aos Tessalonicenses: "Irmãos, rezai por nós, a fim de que a palavra do Senhor se espalhe rapidamente e seja bem recebida, como acontece entre vós" (2Ts 3,1).

 

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